Enquanto a segunda temporada fez nascer a mitologia, a terceira foi uma temporada de ajustes. Carter revela em uma entrevista anos depois, que foi intimidado pelos executivos da Fox a realizar uma série nos moldes dos episódios de Além da Imaginação, com histórias fechadas e sem absolutamente nenhuma conexão entre si. Como em muitas coisas que fez durante seus anos à frente do programa, Carter resistiu e não cedeu. Encheu a primeira temporada de conexões indiretas e assumiu as conexões a longo prazo com Anasazi¸no final da segunda. O que apavorou os executivos: nenhum deles achava que fazer um fã esperar seis meses pra ver uma continuação ou obter uma resposta, seria uma boa estratégia. Os showrunners de hoje devem muitos agradecimentos ao que Chris Carter fez pela indústria das séries naqueles anos 90. Sem ele, talvez fosse impossível para Damon Lindelof e Carlton Cuse, convencerem a ABC a levar adiante uma idéia que só ficaria clara depois de seis anos de show.
Certo de suas decisões, Carter aproveitou os prêmios e a audiência crescente para incorporar as bases definitivas da mitologia. O Globo de Ouro vindo pela segunda vez ajudou a tornar essa perspectiva possível. A terceira temporada é uma temporada fraca de episódios soltos e muito forte de episódios mitológicos. Foi provavelmente aqui que o projeto (nome dado ao conjunto de decisões conspiratórias que escondiam os segredos perseguidos por Mulder) ganhou vida. Foi provavelmente aqui que as temporadas seguintes foram planejadas do ponto de vista mitológico. E esse planejamento provou, pelo menos até a sexta temporada, estar muito coeso e objetivo.
A abdução de Scully foi ganhando mais capítulos, a aparição do óleo negro ampliou as teorias científicas e os homens comandados pelo Canceroso revelaram parte de seus objetivos globais. De súbito, a série começou a ser tratada pela mídia e por intelectuais como um produto genuinamente desafiador, épico. As teorias passaram a circular pela net e pelo boca-boca como rastilhos de pólvora e o culto começou a ganhar força. Já tínhamos revistas especializadas na série, livros, colunas, convenções... A terceira temporada é marcada pela quebra de uma barreira: a de que séries de ficção científica, de fenômenos sobrenaturais, podem sim ser levadas a sério e servir de referência para sagacidade e inteligência.
Vamos então aos dez melhores episódios da terceira temporada:
“Operação Clipe de Papel” - 3X02
A primeira parte da primeira grande trilogia da série iniciou-se em Anasazi, na temporada 2. A terceira temporada começa com O Caminho da Cura, que mostra como Mulder conseguiu escapar da armadilha do Canceroso e como Scully descobriu que um chip foi parar em sua nuca sem maiores explicações. Mas é só em Operação Clipe de Papel, que a trilogia mostra todo seu poder e nos presenteia com sequências de tirar o fôlego. O título do episódio diz respeito a um programa secreto que catalogava abduzidos em todo mundo. Ao chegar ao “depósito” de arquivos, Mulder encontra o nome de Scully e o de sua irmã entre os abduzidos. Acaba descobrindo que deveria ter sido levado no lugar da irmã. A cena é uma das mais preciosas da série e tem o momento antológico que mostra uma nave chegando e no escuro dos corredores, Scully sente, apavorada, pequenos seres passarem correndo por ela. O episódio ainda tem outra dezena de momentos importantes como a morte da irmã de Scully, o embate entre O Canceroso e Skinner, a revelação da mãe de Mulder de que havia uma razão para sua irmã ter sido levada ao invés dele, a morte de seu pai funcionando como um catalisador de sua relação com Scully, os novos rumos de Krycek e por aí vai. É um desbunde de criatividade e inteligência.
“O Repouso final de Clyde Bruckman” – 3X04
Darin Morgan é conhecido dos fãs da série por seus episódios de narrativa desconstruída e incrível senso de humor. O Repouso final de Clyde Bruckman foi premiado no Emmy e é sem dúvida, um grande momento do programa. Mulder e Scully investigam mortes de videntes que parecem todas executadas por um curioso serial-killer. No processo, acabam encontrando com Clyde, um vidente de verdade que consegue ver o momento em que qualquer um morrerá, no futuro.
“Os Japoneses” – 3X09
Como disse na introdução do post, essa é uma temporada mitológica e entendendo como esses episódios interessavam os fãs, Carter jogou outro episódio duplo antes mesmo da metade dela. Nessa maravilhosa trama, Mulder recebe uma fita com uma provável autópsia alienígena (numa referência à famosa fita que foi veiculada até mesmo aqui no Brasil, no nosso Fantástico) que ao contrário de sua homônima fraudulenta, mostra-se quase verídica. A investigação leva Mulder a crer que uma entidade alien estaria sendo transportada de trem pelo país e ele segue em seu encalço. Como já de costume nos bons episódios mitológicos, Scully segue em outra vertente da investigação, descobrindo que há várias mulheres abduzidas que também tinham um chip na nuca, que estão morrendo de câncer.
“O Falso Alienígena” – 3X10
A continuação de Os Japoneses eleva o nível dos roteiros um grau a mais. Scully descobre, numa sequência impressionante, que uma base é mantida para experiências com células híbridas. O Sindicato, vendo onde ela está chegando, não tem outra escolha e manda um membro do clã para convencê-la de que o que Mulder persegue naquele trem é um desses seres híbridos mal sucedidos, que são eliminados aos montes, em covas coletivas, na base. O episódio termina com o informante X salvando Mulder de uma grande explosão para eliminar a criatura.
“Revelações” – 3X11
Antes do filme com Patricia Arquette, pouco se sabia sobre as estigmas (feridas iguais as de Cristo que aparecem em pessoas muito religiosas sem que tenham sido infringidas) e Kim Newton as aborda nesse sinistro episódio em que as tais estigmas começam a aparecer em um garoto problemático. O episódio tem seu ponto alto quando Mulder explica a ocorrência do fenômeno daquela maneira tão desesperada com a seguinte frase: tenho medo de que Deus esteja falando... e ninguém esteja ouvindo.
“A Morte vem do Espaço” – 3X13
Carter é bom de episódios mitológicos, mas costumava dar seus vacilos em histórias soltas. Aqui, no entanto, temos uma excessão. A morte vem do espaço é uma história deliciosa sobre um raro alinhamento astral que tem uma pequena cidade americana como catalisador. Duas amigas, que nasceram no mesmo dia e hora, acabam captando toda essa energia devastadora e usando-a para o mal. O problema é que o alinhamento acaba mexendo com todo mundo e com isso quem ganha é o espectador, que vê um Mulder todo sexual e uma Scully descontrolada de ciúmes. O episódio tem um grande momento, quando as energias das duas garotas estão tão intensas que provocam uma chuva de pássaros mortos no meio da madrugada. A cena, com canto gregoriano ao fundo, é um desbunde. Temos um elenco de nomes futuramente famosos como o de Lisa Robin Kelly (That’s 70 Show) e Ryan ... (...). A canção All Over You, do Live, toca na cena da festa. A banda acabou se tornando pra mim, mais tarde, uma referência de qualidade e poesia.
“O Mistério do Piper Maru” – 3X15
A dupla Carter e Spotnitz começa a se consolidar como uma dupla de roteiristas mitológicos, e eles decidem inserir outro elemento na mitologia. O oléo negro faz sua primeira aparição e a ideia é tão simples quanto genial. A entidade alienígena, presa no fundo do mar, dentro de um submarino, aproveita uma expedição de exploração e pula de hospedeiro. Isso mesmo. A massa gosmenta de óleo salta de uma pessoa pra outra, controla sua mente, e só é perceptível por conta de uma sombra escura que desliza pelos olhos da vítima. Seria tão absurdo se estivesse em outra série, mas aqui em Arquivo X se torna um símbolo da capacidade do programa de dominar a narrativa (algo muito parecido com o que aconteceu com o monstro de fumaça em Lost). Mulder descobre, em sua investigação, que Krycek tem vendido segredos para outros governos desde que o Sindicato tentou se livrar dele numa queima de arquivo. Mulder o captura em Hong Kong e no caminho de volta, Krycek acaba se tornando a próxima vítima do óleo.
“O Mistério do Piper Maru II” – 3X16
Na continuação, Krycek, tomado pelo óleo, procura O Sindicato para trocar a fita com os arquivos MJ que ele possuía, por algo que o grupo de conspiradores possui dentro de um silo de mísseis. Mulder e Scully descobrem que o submarino naufragado tinha tido contato com um OVNI que mais tarde teria sido resgatado. É exatamente essa nave que a entidade possuidora de Krycek procura. Em troca da fita, O Canceroso leva Krycek ao silo e numa cena impressionante, o russo “vomita” o óleo pelos olhos, pela boca, pelo nariz, pelas orelhas... na superfície da nave. Mulder e Scully descobrem o silo, mas são pegos pelo Canceroso e impedidos de alcançar o OVNI. O episódio termina grandioso, com o óleo de volta ao seu “lar”, e Krycek preso dentro do silo. Aqui fica claro que o membro do sindicato vivido por John Neville tem personalidade ambígua. O episódio também tem a clássica frase de Scully sobre a consciência ser uma voz vinda dos túmulos dos mortos.
“Do Espaço Sideral” – 3X20
A série perde mais um grande roteirista. A saída de Glen Morgan e James Wong foi sentida nessa temporada, fraca de bons episódios avulsos, e com a despedida de Darin Morgan, a produção executiva tem o pepino de manter a qualidade dessas histórias. Aqui nesse absolutamente fantástico episódio, ficamos conhecendo um pobre soldado do governo que tem a ingrata função de forjar abduções alienígenas e que um dia acaba sendo verdadeiramente abduzido. Com mais uma narrativa descontruída, cheia de fragmentações, vamos conhecendo o roteiro enquanto ele vai sendo contado por diversos pontos de vista. São tantos os momentos antológicos que eu precisaria de muitos tópicos para descrevê-los.:
“O Milagre” – 3X24
A Season Finale da terceira temporada é, em minha opinião, a mais fraca de todas! Mais do que até mesmo das últimas temporadas. Embora a ideia fosse boa – um homem misterioso chama a atenção da polícia após curar milagrosamente as vítimas de um assalto – e estivesse claramente conectada aos eventos científicos da segunda temporada, o episódio tem um final frouxo e não melhora na sua segunda parte. Outros ícones da série aparecem pela primeira vez aqui, como Jeremiah Smith (ícone da resistência alien) e a arma parecida com um picador de gelo que é a única coisa capaz de matar os alienígenas. No entanto, Carter exagera um pouco nos detalhes e vemos os primeiros perigos provocados pelo excesso de criatividade. De uma só vez, sabemos que os alienígenas curam outras pessoas, só morrem com um furo na nuca, têm lados opostos na questão colonizadora e podem se transmorfar até em pessoas mortas. Aqui também temos a primeira menção ao caso entre O Canceroso e a mãe de Mulder e o paradeiro de Samantha volta ao cerne da questão. Embora cheio de problemas de ritmo, o episódio é importante demais para a mitologia para não fulgurar nessa lista.
Agora vamos dar atenção aos erros. Como já dito, houve muitos enganos nos episódios soltos, que continuaram apostando em mutações e criaturas que não serviam ao propósito intelectual da série.
“O Raio da Morte” – 3X03
Howard Gordon continua sua carreira de ideias esdrúxulas e vem com esse episódio sobre um garoto que sobrevive a um raio e começa a controla-los. O episódio seria indigno até de menção, se não fosse Jack Black começando sua carreira fazendo uma ponta nele.
“A Guerra das Baratas” – 3X12
Darin Morgan não vai embora sem cometer seu erro. Embora esforçado e bem humorado, esse episódio sobre baratas é chato como a anatomia de suas protagonistas. Tem Mulder arrastando asa pra tal da Bambi e Scully falando com ele pelo telefone o tempo todo, já que Gillian Anderson não podia estar à frente do episódio por conta de outros compromissos. As mortes são fracas, as baratas não convencem como assassinas e as teorias que fundamentam os roteiros são confusas e forçadas. Enfim, ruim. Bem ruim.
“A Maldição da Múmia” – 3X18
Pior ainda, só esse A Maldição da Múmia. Não sei onde aquele povo estava com a cabeça quando resolveu colocar a culpa de uma série de crimes misteriosos num bando de gatos possuídos. As sequências que envolvem Scully sendo atacada pelos gatos é tão ruim que chega a dar vergonha. O episódio todo é chato, feio, não se resolve teoricamente e ainda nos premia com esse desfecho totalmente indigno da série.
“O Monstro do Lago” – 3X22
Mais um episódio monstro da semana que podia ter ficado na gaveta. Claramente inspirados pelo monstro do Lago Ness, o pessoal resolve contar a história de um tal monstro que aparece num lago e está matando gente. Mulder vai pra cidadezinha cheio de vontade de encontrar a criatura e Scully segue-o entediada. A história não é boa, mas o episódio tem um monte de bons momentos, principalmente nos diálogos. O roteiro tem bom humor, caçoa dos agentes, mata a cadelinha feia de Scully e faz boas comparações entre Mulder e o herói de Moby Dick. Mas ao passo em que a série sempre preferiu teorizar muito mais do que conceitualizar, obviamente que a existência da criatura de fato não era importante. Quando os agentes encontram um crocodilo gigante, tudo se encaixa dentro dos propósitos nada megalomaníacos do programa, mas eis que nos segundos finais, Kim Newton, roteirista do episódio, resolve achar que Arquivo X podia se permitir um toque disneylândico e coloca uma criatura meio pré-histórica nadando no horizonte do lago, inofensiva e poética. Quase dá pra esperar a vinheta da Sessão da Tarde vindo logo depois dos créditos. Pois é, Newton, você achou que Arquivo X permitia esse tipo de coisa, mas olha aí! Não permite.
See you in the fourth season...