A mesma roupa que eu já havia usado como José no Auto de Natal estava me esquentando e eu já tinha me arrependido de não ter passado maquiagem nenhuma. O suor escorria... Duas horas e meia esperando dentro de uma sala. A gente conversa... brinca, fala sério... e até dorme. Cinqüenta pessoas divididas entre excitação, medo e tédio.
Jesus, Maria, Soldados e alguns Apóstolos, eram os que estavam entre os excitados. Depois de anos de uma política criativa mercadológica, a “A Paixão de Cristo” desse ano seria de uma política criativa mercadológica voltada pra mão de obra local... e barata. Sinal de cachê. E de alunos novos servindo de estopa. E eles são sempre os mais excitados. Com a oportunidade. Com a “confiança”. Com a grandeza. Enfim...Com tudo.
Madalena, Herodíade, Herodes, alguns Soldados e Sacerdotes, eram alguns dos amedrontados. Por motivos diversos, amedrontados e ligados. Geralmente num interlúdio entre não serem experientes, mas também não serem alunos novos. Ou nem mesmo serem alunos.
Caifás, Pilatos, Salomé, Verônica e muitos dos que faziam “o povo”, eram do time dos entediados. Anos e anos a fio transitando entre esses personagens. Hora bem, hora mal. Cansados mas insistentes. E estranhamente, incapazes de renunciar.
E eu era Judas.
Já tinha sido Arimáteia.
Já tinha sido João.
Agora era Judas... O traidor.
Podia até ter entrado na onda. Tem gente que faz isso... Entra na onda da criação interior. Age pela bodyage ambicionando alguns aplausos inflamados. Acho que não era o caso esse ano... Éramos todos povo e alguns eram alguém. Éramos todos a estrutura... entre triangulações e panos esvoaçantes.
E eu era Judas.
Mesmo sem forçar a barra, todo artista é meio maluco. E nessa época eu sempre fico evolvido com a história desse Messias. O célebre Jesus. E Judas é uma figura engraçada. Às vezes fico me perguntando, e se ele não traísse? Como é que Deus ia se virar pra cumprir a profecia? Porque ele já tinha sido avisado que iria trair... Podia ter evitado. E por vezes acho que não faz sentido que ele tivesse seguido adiante. Como também não acho que faz sentido Jesus saber de tudo. Tira um pouco da verossimilhança dos fatos e anula a necessidade divina de que ele fosse humano. Mas enfim... sou eu de novo pensando como escritor.
O fato é que lá fui eu me enforcar simbolicamente com o pano/corda de Judas. Dá até uma emoção... Decidi enquanto me fingia sufocar, que iria na biblioteca e pegaria o “Operação Cavalo de Tróia” pra ler. E já peguei.
Nessa mesma noite da apresentação, dois homens haviam sido assassinados minutos antes do espetáculo. Talvez por isso, nós, lá no palco, nos esforçamos pra fazer tudo certo e pra conseguir tocar alguém. Não sei o que aconteceu... É curioso pensar como todos pareciam só pensar nos duzentos reais do cachê e ao mesmo tempo, demonstrarem uma ambígua dedicação.
O Gustavo estava viajando... não assistiu.
Viajei pro Rio no dia seguinte e passei o fim de semana com meus amigos. Foi ótimo, como sempre. E acho que sempre será... e essa é uma certeza reconfortante como uma cama quente no inverno. É alguma espécie de combustível e de força.
A volta da viagem foi profética. E num esquisito sentido interconector.
As viagens do Gustavo pra Cordeiro sempre me aborrecem. Os ciúmes do ex-casamento dele ainda me tomam de assalto e volta e meia eu surto.
Por uma questão de sanidade, eu trabalho dentro de mim a impossibilidade total de transferir isso pros filhos dele. No entanto, aquele passado longo, vasto e importante me ameaça. Não devia... e eu tenho consciência plena disso. Gostaria de me expressar até pra que ele me entendesse melhor... mas eu sempre descambo pro inusitado. E ciúmes raramente são compreendidos na sua natureza. Geralmente apenas os efeitos são percebidos e discutidos.
Quando ele volta de lá, eu já estou carente e vulnerável. Acho que percebendo isso, ele se esforça pra eu me sentir especial e a história da vidente veio numa dessas tentativas.
Segundo ele, uma moça que ele conheceu por acaso, disse, lendo a mão dele, que ele tinha uma pessoa muito especial, que gostava muito dele, que tinha muitos ciúmes e era muito diferente. E que os dois, ele e a pessoa, se amavam muito.
Ouvi a narrativa encantado.
No dia seguinte, a verdade veio sem aviso e como sempre vem, seca.
Conversando com o Tiago, que havia estado com o Gustavo dias antes da minha chegada, eu descubro que as palavras da vidente não foram absolutamente essas e como decisão de prevenção, não acho que é necessário repeti-las em sua totalidade aqui. Basta saber que a vidente não me reconheceu como sendo a pessoa com quem o Gustavo estaria no futuro e que isso seria culpa da minha dificuldade em lidar com meus sentimentos por ele.
O tom do Tiago era “ou recobra a sanidade ou tchau Gustavão”. Minha cara era “quanta bobagem”. Mas no fundo eu sentia “por Deus que seja mentira”.
No primeiro momento resisti bravamente ao engulho que se formava por dentro. Depois, gastei todos os créditos do meu telefone, aos prantos com o Gustavo.
Ele se enfureceu com o Tiago. Os dois, que conversaram sobre o assunto, haviam combinado de não falarem nada comigo devido a possibilidade de intensidade da minha reação (mais um ponto a favor da vidente). E estavam certos. Eu comecei a ver tudo escuro. E um mar salgado e violento de auto-piedade e fracasso, se fez dentro de mim.
Há meses que venho lutando contra as minhas reações extremamente psicológicas quando o assunto são os ciúmes do passado do Gustavo. Há meses que eu luto contra o paradoxo de confiar nele mas continuar sofrendo com as falhas de sua personalidade antes de mim. E mesmo brigando com ele por razões voltadas quase sempre aos deslizes de sua natureza descansada e distraída, à necessidade quase absurda que ele tem de não se sentir preso mesmo sabendo que determinadas regras precisam ser seguidas pra se ter um compromisso com alguém, nos meus discursos sempre tem aquele resquício desse torpor causado por essas inseguranças. Inseguranças essas que eu às vezes quero reprimir e às vezes quero ter o direito de poder sentir.
E ele é paciente. E não sente nada parecido. E não entende.
Pra mim, o que a vidente fez, além de acertar na minha instabilidade, foi nos condenar a uma posição de luta contra o destino. E o destino é um inimigo invencível. Condenou-me a achar que o amor do Gustavo morrerá por mim e renascerá por alguém que ainda não veio. E é horrível pensar nessa possibilidade. Se antes ele estava fechado pra ela, agora não está mais. Tem um compromisso moral de me garantir a natureza charlatã da profecia, mas é um crédulo fervoroso das manobras cósmicas da não-coincidência. Nossa relação mesmo, é construída em 40% dessas vigas mágicas. E ele sempre vai lembrar disso.
Chorei. E foi como se tudo se esvaísse de mim.
E então notei que nesse caminho eu ia satisfazer a profecia com rapidez sobrenatural.
Mesmo assim, às vezes a gente não raciocina, só sente. E brigamos. Brigamos por horas e dias seguidos. Brigamos porque eu não queria ter sabido disso. Brigamos porque eu não queria que ele tivesse sabido disso. E brigamos por todos os motivos, menos esse. Embora esse estivesse embutido em todos. Era como se eu estivesse testando-o pra saber se ele iria mesmo pular fora e ele, era como se estivesse me dizendo “Henrique, me ajude a não realizar isso”.
Eu nunca acreditei em amor eterno. Mas tinha um desejo imaturo de que pra ele, eu sempre o fosse. E é aí que entra o sentido minimalista da vida do Gustavo. Em conflito com o extremismo da minha. Depois de tanta baixa auto-estima, eu ainda continuo nutrindo uma necessidade colossal de nunca ser rejeitado e de ser o único e mais importante, sempre!!! E como lidar com isso, vivendo com um homem que tem um monte de outras coisas importantes com as quais se dividir e que tem uma maneira tão serena de lidar com determinadas expectativas?
Eu preciso mesmo de uma ajuda profissional.
Preciso mesmo.
Acho que ainda hoje os efeitos da vidente ainda não se foram por completo. Amor pelo Gustavo, eu tenho numa proporção cada vez maior. E sei que ele me ama muito também.
No entanto, eu preciso de mais força. E preciso de mais sensatez. Sei que nunca vou poder desafiar o destino, mas posso conseguir suborná-lo com a minha força e vontade.
E ela sempre poderá ter errado.
Embora seja a fé de quem procura o vidente, o maior responsável por seus acertos.
Passei uma semana horrível tentando esquecer isso e voltar-me para o término da peça que estou tentando escrever há um tempão. Numa outra interconexão intrigante, o título que me veio a mente foi “Um tipo de acorde”, em que a palavra “acorde” se divide entre seu significado musical e seu significado imperativo.
Montá-la é um objetivo. Mas depender de outros que acreditem nele, tem sido um problema.
Com esses “acordes” na cabeça, fui pro trabalho pesado de “recepcionista caipira” na feira agropecuária da cidade. Ao lado da excêntrica Estrela Ingrid, lá fui eu passar oito horas em pé, fazendo sotaque e sendo simpático, pra ganhar um outro módico cachê. Tudo isso enquanto outros mais afortunados e bem quistos perante as pessoas que decidem esse tipo de coisa, do que eu, ganhavam bem mais pra trabalhar bem menos.
Mas foi bom. Aprendi um pouco sobre coelhos, porcos e avestruzes. Me expus sem vergonha pra pessoas importantes e ganhei alguns elogios bem vindos a respeito da minha beleza e carisma.
Horas e horas dentro daquela fazendinha, cheirando aquela merda e ouvindo aquelas doideras, foram um bom exercício pra minha mente cansada.
Saí com uma boa sensação de estar ralando o que posso ralar pra garantir uma grana. Agradeci muito profissionalmente aos que me contrataram e voltei a me concentrar em terminar a peça.
Agora estou aqui... com ela nas mãos. Terminada e toda preparada.
Eu quase sempre tenho a necessidade de me resignar... Não competir. Esperar até que eu tenha a certeza de que não estarei sendo mal interpretado.
Acho que é um desses momentos chegando. E o mais curioso? Tem a ver com Tiago. Mesmo tendo esperado até ele ir embora pra apostar em uma coisa minha e assim evitar o desgaste de uma competição, ele retorna no meio da minha decisão e começa uma nova aposta também. Retorna daquela maneira... capenga. Espalhando sua dependência nos outros pra todos os lados. Mas com sua determinação criativa que eu tinha prometido que não iria contestar e nem desafiar. Pra mim ainda não está clara a razão desse constante embate entre nós, mas eu sinto uma necessidade vital de evitá-lo.
Acho que vou ter que esperar mais. Se o que o karma quer é que nos enfrentemos, então vai ter que agir sozinho.
É tanto esforço pra ver além, por dentro e com minúcias, que eu fico me perguntando... Onde estão os possíveis olhos atirados sobre mim?
Eles existem?
Agora mesmo eu pensava... Pra quê??
- Pra te dispensar com educação, oras! Ao menos esse hipócrita é gentil - Respondeu a voz dentro da minha cabeça.
Esse tipo de pergunta "pra quê" e "porquê" é bem característico do drama televisivo que a gente pega por osmose sem querer. Alguns por querer... mas não vem ao caso.
O Gustavo acabou de me ligar pra dizer que chegou na casa dos filhos. E eu estava pensando em outra coisa: a hipocrisia.
Nada a ver com ele. Claro.
Ontem brigamos porque eu ainda não consigo aniquilar esses sentimentos exclusivistas que teimam em me dominar quando o assunto é o passado dele. Choramos, berramos, nos abraçamos, transamos e por fim, o nosso amor ainda supera determinadas coisas.
Ainda não sei até que ponto suportará as minhas neuroses patológicas... mas nem eu mesmo sei quanto tempo eu vou suportar.
Estamos bem. A sensação de realizar um sonho é boa... E de vez em quando a casa cai, mas tenho cada vez mais suspeitas de que é no ato de se reerguer a estrutura que as partes ainda se esforçam pra ter romance e conquista.
Estava pensando em hipocrisia, mas isso não tem a ver com o Gustavo.
Curiosamente, tem a ver com o meu passado. Outrora tudo que eu era e agora, tudo que eu torno obscuro em mim. Meu passado enquanto acúmulo de experiências vãs e agora perdido entre memórias sexuais e pequenas rejeições não superadas.
Rejeições não superadas...
Há um tempo atrás, conversei rapidamente com um cara casado com quem me relacionei por um bom tempo antes de conhecer o Gustavo. Óbvio, que esse cara não sabe até hoje que quando ele me deu um pé na bunda, semeou dentro de mim o complexo de rejeição que é certeiro em tornar essas pessoas inesquecíveis.
Um dia ele não me ligou mais.... e até hoje eu me pergunto "porquê"??
Pergunta desnecessariamente feita à ele nesse breve encontro. E respondida com um discurso em prol da família que era de lacrimejar os olhos! O dito cujo estava sendo pai pela segunda vez e havia me garantido uma escolha por sufocar sua "bissexualidade" em nome da própria consciência e reputação.
Acreditei.
Sim... claro... óbvio que acreditei a curto prazo.
E enfim, não acreditei ao mesmo tempo.
Todo mundo, por mais inteligente e seguro que seja (o que não é o meu caso), prefere ouvir motivações que se concentrem além de sua responsabilidade quando o assunto é ser rejeitado.
Talvez por isso, esqueci o assunto.
Hoje, há minutos atrás, surpreendi esse senhor casado trocando telefone na surdina com um dos pegadores mais promíscuos da cidade!
Primeira informação: ele mentia.
Segunda informação: não te quis mais por se tratar de você.
Terceira informação: depois de você, caiu de padrão.
Me agarrei a esse última e tentei esquecer a relevância da segunda.
Apaixonado, namorando e feliz há tanto tempo, não tenho dúvidas quanto a natureza psicológica desse incômodo. Não quero ficar com o dito cujo, mas meu orgulho e vaidade precisam ser sanados do mal que ele me fez.
E isso acaba gerando desconforto, irritação e uma excitação inverídica que se baseia em valores sexistas que eu definitivamente devo esquecer.
Imaturamente, o que eu quero é ser cortejado por ele e ter a chance de dizer não. Mesmo tendo aquele diabinho da luxúria tentando forçar a barra pra que eu me lembre das nossas tardes de sexo no motel.
Mas o caso desse cara é crônico! E acho que nem convém fazer uma conferência sobre a natureza falsa e desastrosa desse casamento que ele insiste em nutrir. Igual à ele existem muitos. E de "bissexuais" que só pensam em homens, o mundo está cada vez mais cheio.
No entanto, um perturbador link entre meus incômodos latentes em relação ao passado do Gustavo e os complexos de rejeição dominadores sobre as minhas histórias anteriores, se fez dentro da minha cabeça e chegou a me fazer pensar em consultas e tarjas pretas!
Sei que sou amado, mas o passado do meu amor me incomoda.
Sei que amo, mas aqueles que me rejeitaram ainda me atingem.
Sei lá até que ponto existe coerência nisso tudo. Boa parte disso tudo é a minha luta por ser monogâmico e esquecer as boas horas de sexo casual. Sou muito sexo e pouca razão. E estou feliz que o amor tenha me feito melhorar isso.
Acabei ligando pro cara e dizendo que trocar telefone com um promíscuo de carteirinha não parecia muito condizente com "valorizar o seio familiar e sufocar certos impulsos". O cara ouviu tudo sem entender nada. Ou tudo. E desligou sem dar maiores explicações.
Depois me senti idiota. O cara deve estar achando que morri de ciúmes dele. E o que senti no entanto foi posse. Misturada com orgulho ferido. Borrada de um saudosismo inútil e inferiorizador.
Acho que no fundo é isso... Ter dificuldade de virar páginas que ofereceram algum carinho recíproco e querer guardar todas num acúmulo que garanta sensações em horas de aperto.
Quando liguei pra ele queria dizer: "sei que você enjoou de mim... sei que é um hipócrita que ainda continua pegando homens pelas esquinas escuras... eu te vejo e te desvendo".
Mas sinceramente, pra quê??
Pra jogar as falhas dele nele mesmo?? Ou pra cutucar meus fantasmas por sí só??
Comecei a pensar que consultas e tarjas pretas podem não ser uma solução considerada linda. Mas é um caminho a ser considerado válido.
Os loucos tem seu charme.
Sobretudo em mentes incapazes de se impôr e ao mesmo tempo, impondo-se.