Keane
"Under The Iron Sea"
O Keane sofreu esse ano um julgamento sofrido por quase todas as bandas que buscam se firmar no competitivo mercado fonográfico mundial: o segundo disco precisava superar o sucesso do primeiro! E nessa missão, muitos foram os que falharam.
O elogiadíssimo "Hopes and Fears" trouxe à tona uma tímida banda inglesa que ganhou o mundo fazendo rock sem guitarras e ganhando respeito ao toque de seu piano e bateria.
Depois de lidas algumas das críticas que circulam na net sobre o segundo trabalho do trio, fica fácil perceber quais foram os alvos dos procurados pro exercício dessas "análises". A "Síndrome do Segundo àlbum" e a "farsa do rock sem guitarras" eram os fantasmas na trilha do Keane, que embora tenha dado inúmeras entrevistas afirmando a despreocupação com as cobranças, precisa admitir um abalo em sua tão recente estrutura de sucesso.
E "Under the iron sea" deixa claro, desde a primeira faixa, que veio pra reconhecer suas obviedades e suas fraquezas e que, exatamente por isso, destila uma poesia e tristeza que transformam o trabalho dos rapazes numa obra que pode não ser surpreendente como se esperava, mas é sem dúvida, uma homenagem linda à frágil natureza humana.
Como numa viagem etérea por domínios inomináveis, temos uma abertura lúdica de um mundo perdido entre oceanos e idéias. O mesmo personagem que começa o álbum pedindo um lugar onde possa deitar em companhia de alguém que o expurgue da solidão, percebe que "debaixo do mar de aço" está o lugar onde reside o coração humano sem a fragilidade e poesia que nos torna vulneráveis e que nos coloca diante da existencialidade.
O álbum passeia de maneira densa e emocionada por todos os estágios dessa descoberta e termina por desmantelar as esperanças de que as emoções humanas sejam expostas e com isso, amenizem as mazelas que perseguem esse personagem tão cheio de desilusão e tão sedento de poesia.
Começamos o álbum com a imprevisível "ATLANTIC".
É o começo da jornada de nosso anti-herói. Tudo que se espera de um mundo recheado de cinismo é que as pessoas se protejam de seus próprios sonhos. Esse personagem implícito deseja algum oceano de esperanças e um lugar onde não seja considerado fraco por não se proteger de nada. A canção tem uma métrica que se revela melodiosa somente lá pelo final de sua duração. O ritmo se altera depois de alguns versos insistentes e o final vem inesperado e surpreendente. Essa canção chegou a ser considerada uma das melhores segundo a crítica especializada que acusa a banda de ter repetido as mesmas fórmulas de seu álbum anterior.
"IS IT ANY WONDER?" tem uma das letras mais incríveis já criadas por Tim Rice.
A canção é a descrição exata da primeira grande desilusão de nosso personagem implícito. Ele diz: "Eu sempre teria o direito a
Viver no reino da bondade e verdade
E assim por diante
Mas agora penso que eu estava errado
E você ria comigo
E agora pareço um tolo por pensar que você estava presente, do meu lado"
A conclusão romântica é triste e imediata:
"Às vezes
Tenho a sensação que estou
Indefeso na hora errada
Onde amor é só uma letra numa rima de criança, uma frase de efeito"
E sua indignação vem de maneira clara:
"É de se espantar que eu esteja cansado?
É de se espantar que eu me sinta tenso?
É de se espantar eu não saber o que é certo?
Oh estes dias!!
Depois de toda a miséria que você fez
É de se espantar que eu me sinta amedrontado?
É de se espantar que eu me sinta traído?"
A faixa é uma das que levanta a polêmica da "ausência de guitarras". A introdução tem um barulho retorcido muito semelhante aos extraídos do instrumento ausente na formação keniana. Chaplin precisou ir à imprensa pra explicar que o som foi conseguido através de uma torção nos pedais do teclado e que a busca por essa sonoridade foi motivo de grande orgulho da banda. A canção tem um refrão colante e é capaz de ficar na cabeça por dias e dias. Sem embromação, "Is it any Wonder" começa rápida, não tem interlúdios e termina no tempo certo, oferecendo uma pequena obra de pouco mais de dois minutos que corresponde, em sua urgência e rebeldia, ao que "grita" o personagem desiludido de nossa jornada.
"NOTHING IN MY WAY" vem numa tentativa de redenção. Há nessa canção um constante questionamento referente a razão pela qual os verdadeiros sentimentos são recolhidos aos pontos inabitáveis do subconsciente. Como numa busca por não falar sobre o que implica sofrimento. E por consequência, uma estrada sem buracos, mas também sem curvas se forma diante dessa anestesia emocional. A introdução lembra um pouco a de "Somewhere only we know" e embora o restante da canção seja absolutamente diferente, foi o suficiente para reforçar o argumento da repetição dos arranjos.
"Nothing in my way" tem belos arranjos de cordas e um pandeirinho sendo balançado lá no fundo, dá o tom melancólico dessa que é a segunda canção mais serena do álbum. Há no último verso: " Para uma alma solitária, você está tendo bons momentos
Para uma alma solitária, você está tendo bons momentos
Para uma alma solitária, me parece que você está tendo bons momentos
Você está tendo bons momentos", uma desapercebida condensação de que é o nosso personagem implícito e do que deseja Tom Chaplin (possível alvo da canção) a respeito de um conceito de sí mesmo e de todos que sentem-se desconfortáveis e fora de seu habitat natural. Uma linda canção!
"LEAVING SO SOON" já conquista pela introdução inspirada. O ritmo já muda novamente depois dos primeiros versos. A canção cresce continuamente e é daquelas músicas pra cantar no chuveiro, gritando e chacoalhando o corpo. Talvez a canção mais otimista do álbum: nosso personagem implícito quer provar que pode se virar sozinho e vai prosseguir em sua jornada.
"A BAD DREAM" é a primeira grande obra prima do disco! A introdução, apesar do título emblemático da canção, nos engana e envereda por um quase infantil toque de ninar. Aos poucos, tudo vai se tornando meio fúnebre e a voz de Tom Chaplin perfura essa expectativa otimista com um tom arrastado e agonizante. Tudo se confirma quando ele canta: "Eu acordei e é como um sonho ruim. Não há ninguém ao meu lado. Eu estava lutando mas já estou me sentindo cansado de lutar. Acho que não sou o tipo que luta. Gostaria de ser se você estivesse ao meu lado, mas você foi embora, sim você embora... agora". E a angústia e profundidade desses versos é como um tapa. Nosso personagem implícito percebe que a única alternativa é render-se à própria natureza e admitir a necessidade do amor pra reconhecer os estágios da vida. Como numa metáfora pra ilustrar o caminho de individualidade social, que nos condena a uma solidão imposta. Ele quer lutar contra isso, mas não pode.
Em dado momento, a canção cresce em melodia e arranjo, ao mesmo tempo em que a voz claramente comovida de Chaplin canta: "Onde nós vamos parar? Eu mesmo não reconheç
o mais meu rosto estranho e cansado". O solo final da canção, regada de "uhhh uhhh's" nos transporta pra uma construção melódica simplesmente incrível e "A bad Dream" termina com um som estranho e deixando uma reflexão angustiante e opressiva.
"HAMBURG SONG" é a única balada assumida do disco.
Depois de tanto desespero em "A Bad Dream", essa linda canção de teclado e piano vem pra pedir um pouco de alegria. Um pouco, um pouco mesmo...Chaplin canta "Eu não quero ser adorado" e nos oferece uma homenagem belíssima ao amor desinteressado e altruísta. Algo como um simples olhar sincero ou uma palavra pura e brilhante ("diga uma palavra ou duas pra deixar o meu dia mais alegre (...) eu me imponho pra conseguir isso, mas você não quer saber. Eu te dei tanto. Tenho que pedir em algum momento...). É simplesmente emocionante o arranjo de piano criado para essa faixa. Ao final, temos uma melodia terna que seria o pano de fundo adequado para toda e qualquer manifestação de amor.
"PUT IT BEHIND YOU" carece de sentido filosófico, mas prima pelo embalo rítmico.
Se forçarmos um pouco, a canção pode ser encarada como um intervalo insignificante num álbum tão cheio de significâncias. A canção tem outro refrão colante e sua maior qualidade está na potência da voz de Chaplin e no solo excêntrico tirado novamente dos teclados. Uma canção muito animada.
A partir daí, o álbum entre num ínterim. Escondida num ponto entre "Put it behind you" e "Crystal Ball", e que só pode ser ouvida se uma canção vier seguida naturalmente da outra, temos a misteriosa "IRON SEA". Toda instrumental, a música cresce continuamente e essa crescente vai sendo acompanhada por um inesperado coro de vozes masculinas. Uma reviravolta meio eletrônica encerra a canção e somos apresentados à melodia rápida e inocente da esclarecedora "CRYSTAL BALL".
A faixa é a grande letra do álbum! E condensa tudo que Tom Chaplin/Tim Rice quer dizer. O curioso é que o arranjo é mais um dos arranjos simples e colantes da banda. O refrão é uma achado! E o incrível é que é simples ao extremo! A letra tem momentos apaixonantes e cheios de significado. "Quem é o homem que eu vejo?
Onde eu deveria estar?
Eu perdi meu coração
Eu enterrei ele bem fundo
Embaixo do mar de ferro"
A canção então parte pra uma mensagem de otimismo:
"Oh, bola de cristal, bola de cristal, salve todos nós
Me conte que a vida é bonita
Espelho, espelho na parede (Espelho, espelho meu)
Oh, bola de cristal, ouça minha canção
Eu estou sumindo
Tudo que eu sei está errado
Então me coloque aonde eu pertenço"
E retorna mais uma vez à desilusão habitual:
"Eu não sei onde eu estou
E eu realmente não me importo
Eu me olho nos olhos
Mas não há ninguém lá
Eu caio sobre a terra
Eu chamo sobre o ar
Mas tudo que eu consigo é apenas
O mesmo olhar velho e vazio"
A jornada do nosso personagem implícito vai chegando ao fim sem que ele vislumbre uma saída. Como último recurso desesperado, entra em cena "TRY AGAIN". A canção, que tem uma métrica exata e quase repetitiva, fala de um contexto amoroso, abrindo espaço pra uma outra interpretação do àlbum (a de que ele é uma grande declaração de amor a alguém que fez muito mal, mas que mesmo assim, é necessário).
A canção tem um refrão arrastado e quase se perde. Lá pro meio, acontece uma evolução considerável na intensidade e a canção se salva. Tudo termina do mesmo jeito que começou, com notas frequentes e agudas, se repetindo numa grafia constante, como um pedido de ajuda cansado que de tanto gritar, permanece audível só pelos suspiros.
Parece uma desistência. No entanto, diante da própria auto-análise, existe no fundo, uma redenção conquistada. E por conta disso, podemos partir para as duas últimas canções que são, além de uma reafirmação dos conceitos adquiridos, as minhas duas canções prediletas do disco.
"Broken Toy" é o arranjo mais elaborado! Um flerte com o tango ou algo parecido, forma essa música que é maior do álbum e mais enigmática. Nosso personagem encara o conhecimento que adquiriu e decide passá-lo adiante. Infelizmente, regado de amargura, suas palavras são ácidas e lamentosas: "Eu observo você
Vem chuva e vem brilho
Mas que bem isso faz?
Eu acho que eu sou um brinquedo que está quebrado
Eu acho que nós só estamos mais velhos agora"
A canção passeia por oscilações de instrumentação e vocal que enriquecem em muito a estrutura da música e é quando, no meio dela, temos uma pista do quanto pode suportar a esperança subjetiva: "Quem disse que um rio não pode deixar suas águas?
Quem disse que você anda em uma linha?
Quem disse que uma cidade não pode mudar suas fronteiras?
Quem disse que você é meu?"
E mais pra frente, uma prova de que palavras são assumidamente um combustível fraco pra quem já sabe o que precisa ser e fazer: "Eu acho que eu sou um cd do qual você se cansou
Eu acho que nós só estamos mais velhos agora
Eu acho que eu sou um brinquedo que está quebrado
Eu acho que nós só estamos mais velhos agora"
E por fim, o trio nos contempla com uma finalização instrumental impressionante e de tão minuciosa, transforma a chegada de "THE FROG PRINCE" numa experiência falsamente serena e tranquila.
A canção começa ao som provocado de uma caixinha de música. A bateria entra marcante e logo a melodia se forma firme e previsível. A voz de Chaplin mostra mais uma vez como o domínio de arranjo vocal é absoluto e os versos vão se encaixando de maneira mágica à melodia.
Rice e nosso personagem implícito, parecem insunuar uma conclusão e uma solução à solidão que domina os homens e numa analogia ao universo dos reis, propõe um sistema de desmistifcação dos sonhos e lideranças: A solidão é produto da busca pelo poder, e seu fim depende da unificação das pessoas. Não há mais reis. Só há, no máximo, príncipes sapos!
Chaplin canta:
"Em um velho conto de fadas eu soube
Que os corações simples serão recompensados novamente
Um sapo será nosso rei
E ogros feios, nossos heróis
Então você balançará seu punho para o céu
"Ah, por quê eu dependo
De modas e pequenas besteiras?"
Todas as promessas quebradas
- Alimente seu povo ou perca seu trono
E perca seu reino inteiro
- Eu prefiro perdê-lo cedo do quê viver nele sozinho
Você era nossa criança de ouro
Mas a quietude e a serenidade
Herdaram a terra enquanto...
...Sua coroa de príncipe se quebra e cai
Seu castelo está vazio e frio
Você se perguntou por tanto tempo pela pessoa que é
Relaxe irmão, relaxe
Porquê agora nós todos sabemos
Em breve, alguém vai colocar um feitiço em você
Perfumes, tesouros, todas as armadilhas que eles conheçem
Você vai cair num sono profundo...
... E é aí que sua coroa de príncipe quebra e cai
Seu castelo está vazio e frio
Você se perguntou por tanto tempo pela pessoa que é
Relaxe irmão, relaxe
Por quê agora nós todos sabemos"
Under The Iron Sea termina com a beleza ostensiva dos últimos momentos de "The Frog Prince". O coro masculino retorna e a magia criada pelo Keane se encerra sem momentos de otimismo assumido, mas com uma beleza pouco alcançada por outras bandas do cenário atual.
O álbum é, sem dúvida, uma obra de filosofia e emoção. Repetitivo ou não. Com guitarras ou não. O Keane ainda emociona e faz pensar...